Em um estudo ainda inédito eu procurei denunciar a confusão que muitas vezes se faz entre ironia e sarcasmo. Trata-se mesmo de um equívoco. A ironia é uma operação intelectual que exige sutileza. Para muitos ela consiste apenas em um xeque bem aplicado no curso de uma discussão por meio de um dilacerante argumento ad hominem que leva o adversário ao ridículo. Mas erra quem a vê assim. Embora ela frequente o debate, o verdadeiro propósito da ironia não é polêmico. Ela tem por meta o esclarecimento. Visa a purificação do pensar, a depuração do sentido. Seu difícil emprego tem provocado a reflexão de grandes pensadores (a exemplo de Kierkegaard) desde que ela foi convertida por Sócrates em instrumento da filosofia, em poderosa arma dialética.
O propósito da ironia socrática era (continua sendo) garantir a ultrapassagem de preconceitos. Ela o faz radicalizando a investigação sobre o sentido real do que se julga conhecer. Assim golpeia de modo fulminante o senso comum, destrói com sua agudeza as respostas fáceis, mantém viva a interrogação para além do tido por certo. Seu efeito, já diziam os interlocutores de Sócrates, é similar ao de um choque elétrico: paralisa, gera perplexidade, tira a segurança da convicção. A etimologia que relaciona eironeía com eíromai mostra que a indagação está no seu cerne: é a chama que ela procura manter viva, que as contestações fátuas não apagam. Dessa pergunta imortal nascem labaredas implacáveis, inesperadas, que revelam a ignorância, queimam sua pretensão.
Quem se vale da ironia com a necessária lucidez sabe que lida com instrumento de difícil manejo. Arma ambígua, ela não atinge apenas o alvo imediato de seus cortes em relâmpago. Volta-se também para aquele que a emprega. É um bumerangue com que muita gente se machuca. Manejá-lo exige perícia, discernimento, elegância. E humildade.
O sarcasmo nada tem com isso, nada tem de inteligente. Falta-lhe a finura, a estranha e fulminante delicadeza da ironia. Embora muitas vezes o pretenda, não consegue imitá-la. Pois é sempre grosseiro, sujo, prepotente, soberbo. Cheira mal, tem hálito podre. Embora possa invadi-lo com efeito sempre negativo, não pertence ao campo dialético. Trai-se quando penetra no reino do argumento, pois então transparece sua natureza rude. Nesse contexto o sarcasmo é só a lama da ironia. Dá-se que ele procede de outro espaço: a rigor, constitui apenas uma das formas do obsceno.
Não são muitos os estudos sobre este obscuro domínio fenomenológico, mas importa muito examiná-lo. Convém indagar: que é mesmo o obsceno? Em que região da prática humana ele se situa?
Quem o interroga deve precaver-se logo contra a tentação infeliz de estreitar-lhe o alcance. Justamente porque dele se alimenta, o puritanismo tartufo se esforça em vão por circunscrever o obsceno ao domínio do sexo. É fato que a obscenidade pode envenenar a vida sexual com o vapor da hipocrisia, o impulso de degradação e a frieza cruel que comporta. Mas não é só este esplêndido reino que ela costuma invadir. E sempre vale a pena lembrar que Eros, com sua selvagem pureza, oferece os melhores antídotos contra esse mal ubíquo, capaz de estender-se aos mais variados campos de ação e paixão, tanto na esfera privada como na pública. Inimiga de Eros, a obscenidade tenta imitá-lo e aproveitar-se dele que nem um parasita, mas nada tem do ardoroso impulso erótico. É sempre fria.
Na concepção dos gregos antigos opunha-se ao obsceno a deusa que eles chamavam de Aidós, também capaz de manifestar-se nas mais diferentes esferas da vida, exigindo atenção até na obscura margem da morte. O seu nome traduz-se de forma muito imperfeita por “Pudor”. Essa comum tradução acerta pelo menos em um ponto: o pudor é sem dúvida um sentimento erótico. Outra aproximação do sentido que a figura de Aidós encarna pode transpor-se, ao menos em parte, numa sentença do povo humilde de minha terra: “Onde não tem respeito não se pode viver em paz, não é possível de jeito nenhum viver de verdade”.
O respeito assim pensado, assumido como condição indispensável à paz do convívio humano e à própria verdade que alenta a vida não se confunde com a obediência rotineira a leis e normas. Concerne antes ao valor que lhes serve de fundamento. E cifra o critério último da sua legitimidade. O decoro que Aidós prescreve ultrapassa, portanto, a simples etiqueta. Vai além dos códigos. Funda a própria ética. Cultivá-lo se torna mais necessário que nunca nas situações-limite, nos momentos críticos da vida de homens e mulheres, nas tribulações maiores das sociedades humanas. Já a obscenidade que o afronta, feroz inimiga de Eros, é sempre caótica, tem gana de anomia. Brutal, autoritária, compraz-se na ignorância, deleita-se na mentira, aproveita-se do desespero e o cultiva com frio sarcasmo.
Vivemos hoje no Brasil um duro momento em que à dor provocada por cruel pandemia se soma o nojo que o espetáculo da obscenidade reinante na mais alta esfera de governo provoca de modo irresistível. Os noticiários resultam duplamente aflitivos. Primeiro choramos ao ver o sinistro progresso da peste, sua marcha incontida, os esquifes empilhados em frigoríficos, a procissão desesperada das ambulâncias e dos carros funerários, a triste expansão dos cemitérios, as valas comuns cada vez mais extensas, o pranto de famílias surpreendidas pela morte de seu membros ou por sua agonia solitária numa espera vã. Estremecemos com a constatação de que o pior ainda virá, de que o colapso do sistema de saúde já começa em quase todo o país. Acompanhamos com temor e tristeza os prognósticos sombrios. Assistimos compungidos a movimentação de milhares de homens e mulheres carentes em filas intermináveis em busca de receber um indispensável auxílio rudemente postergado, regateado, distribuído com incompetência e má vontade, com todos os atropelos de uma burocracia perversa. Já seria muito. Mas ainda temos de suportar o histrionismo sem graça de um governante que se fez aliado da peste, insistindo de modo tenaz em opor-se à única medida capaz de mitigar-lhe a propagação: um presidente que trava o funcionamento do Ministério da Saúde e sem qualquer conhecimento do assunto se arroga em autoridade médica, prescrevendo uma droga em tom de propagandista de esquina, de charlatão consumado. Temos de suportar a performance bisonha do mandatário que depois de ter minimizado de modo irresponsável a doença devastadora continua a promover-lhe a difusão com seu descaso, sua inoperância, sua estultícia, sua indiferença, sua incúria. Diariamente ele dá um pequeno show de grosseria para a reduzida claque que chama de povo, enquanto insulta jornalistas e contesta cientistas com sua vã empáfia. Estarrecidos, nós o vemos injuriar uma senhora com sarcasmo asqueroso, empregando uma metáfora extraída do repertório mais chulo, expressão vergonhosa até para o ambiente de bordéis de quinta categoria — e testemunhamos, incrédulos, as risadas imorais com que homens e mulheres de sua caterva acolhem o dichote imundo. Não cessa por aí o descalabro.
Assistimos ainda a manifestações contra a democracia em que o presidente da república discursa para a malta postada em frente de quartéis a reclamar com berros e faixas o fechamento do Congresso, a abolição do STF, a reedição de um infame ato institucional, a implantação da ditadura — e o vemos, depois, negar com cara de pau que assim violou o compromisso assumido em sua posse, cometeu crime de responsabilidade, atentou contra a Constituição.
Mas não é tudo. Quando um repórter lhe menciona o número escandaloso de mortos pelo Covid-19 no país ele reage, de novo, com deboche, coroando seu impudico “E daí?” com um riso de escárnio e uma pífia evocação da impropriedade de seu nome. Pretende assim fazer uma tirada humorística. Mas sabe que não convence. A expressão que emprega, dando de ombros, quisera ser uma justificativa; mas sua estupidez o trai. Como os romanos diziam, “Excusatio non petita, accusatio manifesta”: o repórter lhe pedia um comentário e ele retrucou com uma esquiva, uma desculpa sintomática, embutida num insulto a milhares de mortos que ele se recusou a honrar com um digno lamento, como o cargo lhe impunha; mas também cometeu assim um lapso revelador de sua inegável responsabilidade pela terrível proporção que assumiu a pandemia no país sujeito a seu desgoverno.
Mas efetivamente não vimos tudo. Chega a notícia de uma escabrosa reunião ministerial que teve por tema não o enfrentamento da calamidade, o combate à praga galopante que produz no país um espantoso morticínio, mas a “segurança” (na verdade a blindagem contra investigações) do presidente e de sua família. Reunião tão escabrosa que não a querem divulgada, não apenas por conta do vexame de sua pauta, que já virou assunto de polícia, mas também, como indicam os vazamentos, pelo baixo nível dos diálogos nela acontecidos, recheado de pornéias do presidente e de torpes recomendações antidemocráticas de ministros ensandecidos.
É incontornável a impressão de pesadelo. Num país devastado por doença arrasadora, enquanto médicos e enfermeiros sem equipamentos choram por sentir-se impotentes e os cadáveres se acumulam nos hospitais, enchem contêineres, transbordam das carruagens fúnebres e superlotam os cemitérios, na sede do poder federal se encena uma chanchada, uma ópera bufa, uma farsa grotesca. Parece que assistimos a um filme B, obra de roteirista alucinado e diretor oligofrênico. A comédia não tem graça alguma. Tem o peso sufocante da obscenidade. E o obsceno é triste, mesmo quando ri. Seu riso amargo soa falso, tem o travo da mentira.
Não podemos, não devemos tolerar mais essa farsa nojenta. Ela tem que ser interrompida. Um governo histriônico, obsceno e genocida é por natureza ilegítimo.